quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A importância da virgindade no casamento: o contexto cabo-verdiano*

Antes de entrarmos no tema deste trabalho propomos analisar o conceito e a importância da virgindade do ponto de vista cultural e ao longo dos tempos.
Nas mulheres a virgindade é caracterizada pelo hímen (uma pequena dobra mucosa que fecha a entrada da vagina), quando ele é rompido a moça deixa de ser garota e se transforma em mulher. Como é uma ideia antiga, há uma série de conceitos ligados à virgindade da mulher. A mulher antigamente deveria se manter pura até ao casamento, pois era sinal de que daria filhos legítimos ao seu marido, actualmente já não é bem assim, as mulheres deixaram certos conceitos de lado e passaram a manter relações sexuais sem se casar. Mas não são todas, ainda existem aquelas que se mantém virgem, esperando o homem certo e outras esperando o casamento.
O conceito da virgindade é construído pela sociedade, baseado em critérios tanto biológicos quanto sócio-culturais, e desta forma pode variar grandemente entre as culturas, sendo muito valorizado em alguns meios sociais ou religiosos, especialmente no que diz respeito à preservação da virgindade antes do casamento.
Vamos, pois, centrar este tema no contexto cabo-verdiano.
Em Cabo Verde, principalmente nos meios rurais, a tradição de preservar a virgindade continua como nos outros tempos, embora a tendência é romper com a velha tradição. Longe vão os tempos em que ser virgem era sinal de pureza e de seriedade para qualquer garota, principalmente quando se aproximava da maioridade e se preparava para o casamento. A garota que não era virgem estava condenada à exclusão social. Era vista como impura e por isso não deveria ser tratada com respeito pelos homens e muitas vezes estava destinada a viver sozinha ou pelo menos não se casar.
Segundo a tradição antiga, o casamento é o ponto alto na vida de qualquer mulher. Para atingir esse objectivo é necessário ser-se virgem, o que vale dizer não manter relações sexuais com penetração antes do casamento. Mas antes desta fase, os futuros noivos devem manter uma relação de intimidade muito próxima, equivalendo ao que se designa hoje por fase de namoro ou de conhecimento pessoal. Durante o período de “namoro”, o futuro casal não pode manter relações sexuais com penetração. Aliás o namoro geralmente é feito na presença dos pais ou de um membro de família após a aceitação por parte desta do rapaz.
Não há um limite de tempo para os noivos se conhecerem. Tudo dependerá da vontade dos mesmos ou dos seus familiares quanto à altura ideal para se casar. Partindo do princípio que é chegada a hora de formulação do casamento, inicia-se um conjunto de rituais para o grande dia com os mais velhos a preparem os noivos para a vida a dois.
Dois dias antes do casamento, os noivos são separados e só podem aproximar-se no dia do casamento. Enquanto se preparam para o grande momento, a festa há muito que já tinha começado, talvez uma semana antes. Independentemente da dimensão da comunidade dos pais dos noivos e dos muitos convidados, são sacrificadas várias cabeças de gados e muitos quilos de produtos hortícolas, que incluem feijões, milho, sapatinha, favas, etc. O grogue não pode faltar, além de outras bebidas alcoólicas nomeadamente garrafões de vinho.
Os dias que antecipam o casamento são preenchidos com os preparativos da festa e a casa dos pais da noiva está permanentemente cheia de convidados, vizinhos e amigos da família. Normalmente quem vai à festa leva sempre um presente para os noivos mas cabe aos padrinhos a responsabilidade de levar sempre uma quantidade maior que pode ser uma vitrina repleta de louças ou cabeças de gados (de preferência bois).
Enquanto decorre a festa, os familiares mais íntimos da noiva (mãe, tia ou madrinha de casamento) preparam a cama onde vai dormir o casal na primeira noite do casamento. Reza a história que se a noiva não é virgem ela tem que relevar antes do casamento para que tudo esteja em ordem na noite de lua-de-mel, nomeadamente os truques para manchar o lençol de sangue fingindo assim que ela era virgem. A noiva só pode relevar este segredo a alguém da sua confiança, que neste caso é mãe ou a madrinha. Na ilha de Santiago, por exemplo, é a madrinha quem prepara os truques, pois a mãe pelos vistos não pode ter o desgosto de casar uma filha “sem três vinténs” ou “bedja”. O “três vinténs” ou simplesmente “três” é o termo que sempre foi utilizado ao longo dos tempos para designar a virgindade feminina. Tudo indica que entrou na tradição da família cabo-verdiana com início da colonização do país.
Sobre o assunto, diz-nos o professor e antigo director do Instituto de Medicina Legal de Coimbra em dois estudos curiosos (Uma Hipótese… e Uma Tese…), de 1940 e 1941. Depois de versar a tradição do uso da velha moeda de três vinténs suspensa de um cordel ao pescoço, para preservar as portadoras da perda da virgindade, escreveu Almeida Ribeiro: “Algum dia passou a ser de uso popular a moeda de três vinténs como amuleto protector de uso popular a perda prematura da virgindade das moças; amuleto, infelizmente, muitas vezes inoperantes. Tornando, nestes casos, inútil como meio de protecção, se não era conservado pelo propósito de, pela continuação do seu uso, procurar iludir os outros, a rapariga punha de lado a moeda, tirando-a do pescoço, quando não era a fazê-lo a própria mãe…” e a expressão de “tirar os três vinténs não teria justificação numa referência directa a uma acção sobre o hímen, mas, sim, tê-la-ia na referência ao acto de pôr de lado, de tirar da pessoa desflorada um objecto material tornado inútil, senão ridículo”[1].
Na tradição cabo-verdiana, geralmente a mãe parece ser quase impossível que tenha conhecimento de que a filha não é virgem. Os pais mais conservadores fazem questão de educar as suas filhas para o casamento que é para todos os efeitos o orgulho maior de uma família.
Partindo do princípio de que a rapariga não é virgem, proceder-se-á a vários truques para preservar a honra da moça – feitos, como já dissemos, pela madrinha e normalmente sem conhecimento da mãe e dos restantes familiares da noiva. Na noite de lua-de-mel, enquanto decorrem os festejos que podem prolongar-se até ao dia seguinte, os recém-casados recolhem-se para o aposento já previamente preparado para os receber.
Independentemente do que aconteceu naquela cama, o facto é que a madrinha já tem tudo preparado para mostrar aos pais dos casais no dia seguinte. O truque consiste em manchar o lençol da cama com sangue da cabeça de galinha. Este método, segundo a tradição, é usado com mais frequência porque é o que mais se aproxima do sangue da virgindade.
Como é da praxe, logo pela manhã a madrinha entra no quadro do casal, levando consigo e de forma escondida o lençol já devidamente manchada. Passados uns instantes ela sai do quarto com uma trouxa à cabeça dançando e entoando canções tradicionais. Neste momento começa-se o lançamento dos foguetes como sinal de que a noiva era virgem e naturalmente a continuação da festa que com certeza vai ser rija. Os pais do casal e a comunidade ficam a saber também de que a rapariga afinal era virgem o que constitui “orgulho” para a família. Durante o dia faz-se a demonstração pública da honestidade da rapariga com a madrinha de trouxa à cabeça e ladeada pelos recém-casados e um pequeno grupo de pessoas da família.
De acordo com a tradição, ela deve primeiro visitar a casa dos pais da esposa para lhes provar que a filha era virgem, exibindo o tal lençol manchado de sangue. De seguida rumam-se à casa dos pais do marido para o mesmo fim. Embora não sendo um costume que se repete em todas as ilhas do país, em Santiago por exemplo, a madrinha só deve exibir a prova da virgindade da rapariga aos pais do casal. Nalgumas ilhas, esta prática é extensiva a outros indivíduos que inclui alguns familiares mais próximos do casal e também às pessoas mais respeitadas daquela comunidade. Convém frisar aqui que caso a jovem esposa fosse realmente virgem a história que acabamos de narrar não seria muito diferente, exceptuando a artimanha levada a cabo pela madrinha e seus comparsas. Assim, com o cumprimento desta prática terminam as festas e os pais e toda a família do jovem casal respiram-se de alívio porque se cumpriu a tradição e se preservou a honra e bom da família e da própria comunidade.
No entanto, nem todos podem ter a mesma história e um final feliz como o casal que acabamos de ver. Vamos supor que de facto, a noiva não tinha o tal três vinténs ou três e a madrinha (e mais ninguém!), confiante na seriedade da afilhada, se deu ao trabalho de preparar o “misterioso” lençol. E para complicar ainda mais as coisas o próprio noivo desconhecia o facto de a rapariga que escolheu para ser a sua futura esposa e mãe dos seus filhos não ser virgem.
A rapariga para enganar os pais e o próprio noivo fingindo que é virgem apenas para poder se casar teria que ter muita coragem e muita pouca-vergonha na cara, isto porque quando se pede a mão de uma moça em casamento parte-se do princípio de que é “imaculada”, por isso na comunidade não se questiona se fulana de tal que vai casar-se com o beltrano é virgem ou não. O curioso nisto tudo é que os noivos não podem, ou pelo menos não devem, manter relações sexuais antes do casamento. O acto sexual é sagrado e seria pecado mortal para quem o praticasse sem a devida “autorização” da Igreja Católica, através do casamento. Talvez por levarem os deveres católicos aos extremos muitos não consentiam a relação sexual antes do casamento, por mera educação religiosa ou simplesmente por preferirem guardar esse grande dia para a noite de núpcias.
Nessa noite, o casal recolhe para os seus aposentos como habitualmente. A grande expectativa será no dia seguinte, porque os pais e toda a comunidade estão ansiosos para receber novidades. Durante a noite, infelizmente o marido acaba por descobrir que a mulher não é virgem. Geralmente, não se pode saber se houve ou não discussão entre os recém-casados durante a noite. A tradição diz que o marido ao tomar conhecimento da ausência da virgindade na mulher interrompe imediatamente o acto sexual e dorme de cara para a parede até ao amanhecer. Há histórias que dizem que o marido mesmo apercebendo de que a mulher não é virgem, não deve interromper o acto sexual que por sua vez deve continuar até ao fim mas fora da cama. A cama deve manter-se bem arrumada e sem sinais de que tenha sido usada durante a noite.
Independentemente da forma como terá decorrido a noite, o importante neste caso é ausência da virgindade da jovem esposa. O marido, por conseguinte, deve levantar-se muito cedo para dar “satisfação” à comunidade. Antes de sair do quarto deve vestir-se a rigor, ou seja trajar a mesma roupa que levou para o casamento. Um pé das calças deverá ficar pelos joelhos enquanto o outro permanece de forma normal. A camisa fica fora das calças e desabotoadas e não deve trazer gravatas. De seguida, sai à rua ou sobe para o telhado da casa onde vai permanecer por tempo indefinido, pelo menos até que seja visto por todos os habitantes daquela comunidade. Quando isso acontece é sinal de que a noiva era “bedja”, tornando o marido motivo de chacota entre a vizinhança. A partir desse momento toda a gente fica a saber que a fulana de tal casou “bedja” e por isso não é digna de respeito. É algo que vai manchar para sempre a vida de qualquer casal.
Não vamos abordar aqui a influência da Igreja Católica em todo este processo pelo que o faremos oportunamente numa outra perspectiva sobre o tema.
Hoje não se questiona a importância da virgindade no casamento como antigamente. A tradição ainda existe, principalmente no interior da ilha de Santiago, mas já não possui as características dos tempos dos nossos avôs.
(...)
A própria legislação cabo-verdiana nunca previu dissolução do casamento com base na ausência da virgindade [...].


* Resumo de exposição feita na aula de "Introdução ao Direito de Família e Menores", no ISCJS (em actualização).
[1] RIBEIRO, António, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Nº 36, Ano ??, Ed. Página Editora, Portugal.

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